Tiago “NERVE” Gonçalves sobre Arte e Expressão – LIMBO Magazine

Fotografia por CHIKOLAEV (IG: @chikolaev); entrevista por @_filipada (IG)

Tiago "NERVE" Gonçalves sobre Arte e Expressão

Eu crio porque é urgente, é vital, é a única forma como consigo imaginar-me a viver. Não existe outra opção, nem existiria mesmo que toda a gente parasse de apoiar.
Tiago "Nerve" Gonçalves

Pessoa e artista. Um “não-rapper que, se rappa, dá-te a coça.” Conhecido como NERVE e criador da Purga.

Tiago "NERVE" Gonçalves sobre Arte e Expressão,NERVE, Hip Hop, Tuga, Entrevista, Rap

Fotografia de Sebastião Santana (ig: @sebaztiao)

Vi, recentemente, uma entrevista que deste à Rimas e Batidas. Nela falas sobre a urgência em expressar ideias sobre ti próprio. Algo urgente, é algo que tem de ser feito o mais rápido possível. Queres desenvolver este aspeto? Passados 5 anos, o sentimento é o mesmo? Essa urgência virá de um constante estado de introspeção?

Estados de introspecção puxam-me de facto para criar, sem dúvida, mas é maior que isso. Acredito que se fizesse música mais virada para “fora” teria igual urgência em criar. Um exemplo, para tentar clarificar essa ideia de urgência: por vezes, principalmente desde o projecto PURGA, partilham comigo alguns textos para eu dar a minha opinião e, em alguns casos, esse pedido de crítica é acompanhado por um certo peso extra, uma suposta responsabilidade acrescida, como se a minha opinião pudesse influenciar o rumo de quem escreve além de mim; algo como: “Achas que devia continuar?”. Fosse a minha resposta completamente honesta, sem panos quentes e desprovida de empatia, seria: “Não, claro que não deves continuar”. Isto porque, sim, eu acredito que o principal combustível para um artista criar vem de si, não de opiniões exteriores. Daí referir a “urgência”. Parece-me algo elementar enquanto artista embora entenda que talvez essa convicção também se trabalhe com o tempo. Em todo o caso, se algum criador coloca noutra pessoa o peso de decidir por ele se deve ou não continuar, talvez esse criador não tenha assim tanta urgência. Talvez não tenha assim tanta vontade. Talvez não tenha assim tanto a dizer. Talvez não tenha ainda encontrado as razões mais honestas para o fazer. Eu não crio só porque gosto ou porque algumas pessoas me apoiam ou aconselham a fazê-lo. Eu crio porque é urgente, é vital, é a única forma como consigo imaginar-me a viver. Não existe outra opção, nem existiria mesmo que toda a gente parasse de apoiar. Não existiria mesmo que o meu público, junto com todos os meus ídolos, todas as minhas referências basilares, de ontem e de hoje, se juntassem e escrevessem um abaixo-assinado para eu parar. É maior que isso. Sempre foi.

Se o que expressas vem, como base, da introspeção, como arranjas foco? Sentes-te sempre inspirado? Decides que tens de escrever porque tens de o fazer, para te expressares?

Não me sinto sempre inspirado mas em qualquer momento pode acontecer, o que já não é mau. É como uma frequência qualquer na qual vou tentando manter-me sintonizado. Maioria do tempo oiço estática que lá de vez em quando é interrompida por boas ideias. Se tiver temporadas em que desligo mais da criação, gradualmente tenho menos ideias/vontade. É como um músculo que vais exercitando. Em fases mais produtivas parece que a inspiração chega mais facilmente. Às vezes, quando me sinto menos inspirado, é quando mais me apetece produzir, só para tentar contrariar a inércia. Sair de um bloqueio criativo requer algum esforço que se prende muitas vezes com insistência; numa de criar sem inspiração para ver se ela chega com a produtividade. Há fases de seca, claro, o que é frustrante; contudo, presumo que um estado de constante inspiração seria também frustrante, já que nem todos os momentos oferecem espaço ou disponibilidade para criar e nesse processo haveria sempre ideias que se perderiam no esquecimento. Eu tento registar tudo o que surge, nem que seja só duas ou três palavras para explorar depois quando tiver mais tempo. Já interrompi conversas, discussões, reuniões e outros contextos não muito propícios só para apontar uma boa ideia no imediato, antes que ela fuja. Prioridades.

Fotografia de @_filipada, 2020

Ouvi-te numa Purga, num dos teus poemas, dizer algo sobre não se ser poeta enquanto não se chorar a escrever o poema. A tua forma de expressão acompanha muitas vezes um sentimento mórbido, que parece vir sempre de um sentimento profundo. Achas que a tua forma de expressão só o é, por ser motivada por esse sentimento? É possível que exista a possibilidade de se entrar num ciclo vicioso? A miséria do poeta alimenta o poema e a vontade de escrever o poema aumenta a miséria do poeta?

Quando estou feliz, essa felicidade não é um problema. Não requer solução. Não requer introspecção. Estou feliz e não penso nisso por estar demasiado ocupado com esse estado. Já quando estou mal, quando a vida trata de se evidenciar como a constante potencial fonte de sofrimento que é, surgem problemas. Acontece que ao contrário do estado de felicidade, o problema requer solução, requer introspecção, e mesmo quando não tem solução, requer análise para que dele se extraia aprendizagem, que será útil para lidar com os próximos problemas. Porque no meu caso este padrão é evidente, e porque a minha escrita é fruto de introspecção, parece-me justificado o porquê de escrever mais sobre transtorno, raiva e estados depressivos. Dito isto, esse magnetismo que o lado mais negro da vida exerce no que escrevo vem tendo algum impacto na minha vida, sim, e a ideia de efeito bola de neve pode não ser descabida aqui. Negativo atrai negativo e essas coisas todas, certo? Se calhar às vezes a minha escrita faz-me mal, o que é uma gaita porque eu tenho mesmo de escrever, mais que não seja pelo bem que me faz.

Dirias que tens uma relação saudável com o teu processo criativo? Que escapes, táticas usas para dares início a uma nova criação?

Escrevo tudo o que consigo, sempre que posso. Aponto todas as ideias que surgem, só enquanto frases soltas. Na maioria dos casos, e porque um dos objectivos é ter a maior quantidade possível de “punchlines” por letra, essas ideias que fui apontando acabam por servir como módulos no manto de retalhos que será o produto final. É quase como fazer um puzzle, com a diferença de que neste caso posso fazer batota e reescrever o formato das peças para as encaixar onde quiser.

Como descreverias o papel das colaborações para o teu processo expressivo/criativo?

É uma experiência enriquecedora e, embora não o faça muito nos meus projectos há algum tempo, tenho gosto por essa dinâmica.

Estou a desenvolver um novo projecto (ESCALPE) com o IL-BRUTTO e o TILT e tem sido muito bom partilhar com dois tipos talentosos não só energia criativa mas também uma visão comum. Além disso, é desafiante trabalhar em projectos colaborativos no sentido de encontrar ângulos e abordagens diferentes para fazer música em contextos diferentes. Trabalhar para ESCALPE tende a ser diferente de trabalhar para NERVE que tende a ser diferente de trabalhar para PURGA.

Por fim, sobre a responsabilidade do artista em “Rebanhos”. A viagem do “eu” é tua. Nem todos têm estomâgo para isso. Torna-se nítido, sem querer dizer que a tua arte é a tua armadura, que tens muita coragem para ser vulnerável. E com essa vulnerabilidade, seres intocável. Gostava que falasses um pouco desta questão da vulnerabilidade e também da responsabilidade, se te apetecer.

Não há muito que possa dizer sobre isto que não tenha exposto no “Rebanhos”. Eu exponho-me muito nas minhas letras enquanto NERVE e tendo a expor-me ainda mais quando escrevo para PURGA. O que sempre me levou a achar meio irónico quando me abordam como se eu, num meio cheio de gajos muita machões e muita maus, encarnasse uma personagem, mas isso é outra história. Embora a cultura hip-hop seja uma de aceitação, sinto que muitas vezes, na práctica, o meio do rap não oferece grande espaço a intervenções mais sensíveis, mais frágeis, mais íntimas e se calhar mais honestas. Existe alguma glorificação do completo oposto. Se calhar nem é só no rap. Acredito sim que a vulnerabilidade me confere alguma legitimidade para errar, daí negar responsabilidades maiores, mesmo que as possa ter sem as querer, enquanto artista “influenciador” ou coisa que valha. Eu não estou a partilhar certezas nem conselhos, pelo menos não deliberadamente. Não é esse o foco, de todo. Há quem o faça e cada um é livre de fazer o que lhe der na telha e colher os frutos depois. Eu partilho dúvidas, conflitos interiores ou simplesmente frases que acho interessantes ou bem conseguidas. Partilho as minhas lutas expectando que alguém se reveja nelas mas sem tentar influenciar as suas. A minha preocupação é com o exercício por si, a escrita por si só, o ofício, a arte por si. Não venho aqui educar nem salvar pessoas. Não percebi bem ainda como me salvar delas. Sei de nada.

Gostaste deste conteúdo? Partilha com a tua comunidade.

Deixa o teu comentário!

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Também poderás gostar de...
  • All Post
  • Entrevistas

LIMBO Magazine

Copyright © 2022 Filipa Ferreira. Todos os direitos reservados para www.limbo-magazine.com