Arte e Ofício por Manel Seatra – LIMBO Magazine

Ilustração de Sofia Menino @amor.i.bunda (IG)

Arte e Ofício

Texto de opinião por Manel Seatra, autor de Dias de Folga (2018) e Raiz Densa no Pátio da Garganta (2020), editora Douda Correria.

Há dois campos muito dissecados e, consequentemente, analisados quando se fala de produto artístico — a dualidade “criatividade / disciplina”. Num ponto de vista processual, é a junção destes mesmos campos que leva a obra pensada à obra escrita (afunilando o tema para a Literatura). A associação entre os hábitos de leitura e os hábitos de escrita tende a ser parca no ensino, os estímulos estão muito mais alapados à exploração do génio cristalizado na obra do que à exploração criativa própria e, na verdade, deveriam ter igual importância na matéria da criação literária.

As metodologias na disciplina são infinitas, vou abordar mais enfaticamente a questão do hábito, uma obrigação quase laboral, de picar o ponto das nove às cinco no exercício da transformação escrita. Há quem tente modelos faseados ou rotineiros, há quem sinta um lampejo, incerto, sem aviso de chegada, que embale nas palavras, à caneta ou às teclas (dependendo da ferramenta do artesão, claro). Acredito ser possível experienciar todas estas técnicas, seja para “testar as águas” do conforto com a produção, seja pela pureza do teste e pelas diferenças nos resultados finais.

É de referir que, por vezes, o autor poderá estar condicionado pela sua “outra condição” e, caso não seja autor em exclusivo, se veja forçado a adaptar situações laborais ao ato de escrever. Ainda assim, à partida, se houver coisas para dizer, terão de ser ditas, a purga é uma essência artística muito intensa e vem do âmago da necessidade.

No campo da criatividade há componentes de conjugação e harmonia em que jogam, quase sempre, duas ou mais equipas, entre elas a imaginação, a inspiração, os cinco sentidos, a adaptação ao espaço físico, o contexto social, a atualidade, o estado de espírito do autor (de uma maneira quase egoísta, olhando para dentro, querendo espelhar o exterior ou vice versa). Ao colocar na “panela da criação”, dois ou mais destes ingredientes, é aí que se começarão a cozinhar ideias e, através dos alicerces da técnica, a dar forma ao produto.

Para mim, adotando um prisma muito pessoal e firmado na experiência própria[1], a Literatura detém a responsabilidade-mor de guardar sempre lugar para a subversão, para um humor que mostra os caninos e, sobretudo, um papel de pôr em causa, questionar.

O posicionamento dos elementos participantes na criação artística e, simultaneamente, no seu consumo, deverá tê-los despertos — ativos nas causas sociais, intervenientes cívicos que ponham em prática as reflexões a que se dispõem.

O século XX foi um tempo de metamorfoses colossais, nem sempre num sentido consciente, acabou por ter o desfecho do afastamento entre arte e a sua participação nas esferas de debate, o seu combate às problemáticas de micro-opressões[2]. A imagem do artista exilado no seu palácio de marfim foi-se entranhando no ideário social.

Tornando a frisar que aqui entra uma interpretação muito pessoal, não quero com ela dizer que a Arte terá de ser política na vontade de embandeirar uma cor partidária / ideológica totalmente fixada ou até uma postura demasiado assumida (até porque isso poderá toldar-lhe a visão de um todo), no entanto terá de ter embutidas em si as tais provocações, perguntas, reflexões, indagações, poderá ser a formula de se “fazer política” com o leitor, tornando a aproximar a relação dependente (o autor depende muito do leitor, um livro sem leitor não é livro).

Serão bem vindas a subtileza e a sensibilidade, a expressão pode libertar-se com força e delicadeza em simultâneo, abrir a porta de rompante mas fechá-la com calma. Se os instrumentos que o autor dá ao leitor estiverem enterrados no texto, tornar-se-á numa “caça ao tesouro” exigente na qual o leitor passa a ser uma figura ativa e alerta.

[1] Sempre com a consciência de que a arte poderá ter várias formas de expressão e que, dentro de um sentido de integridade, todas elas poderão ser válidas.

[2] Parece que a opressão, felizmente, ainda vai sendo tímida nos seus novos formatos, ou então, muito mais perigoso, é porque só vislumbramos a ponta do iceberg.

Arte e Ofício, "Raiz Densa no Pátio da Garganta", Manel Seatra, Artigo Opinião, LIMBO Magazine

“[Pausa} Juro-te que não é o meu orgulho macho ferido, é o caminho da estação para tua casa, é a mesa posta e as surpresas. As multidões no Chiado ao sábado à tarde e a Alameda deserta às segundas de madrugada.” excerto de Pausas, in Raiz Densa no Pátio da Garganta de Manuel Seatra

“Raiz Densa no Pátio da Garganta”, livro de Manuel Seatra @laviedemanolo
Ilustração – Sofia Menino @amor.i.bunda
Composição – Joana Pires

O livro está à venda nas livrarias:

  • Fonte de Letras (Évora)
  • Letra Livre, Tigre de Papel, Poesia Incompleta (Lisboa)
  • Flâneur, Poetria (Porto)
  • A Pracinha (Beja)

Ou pode ser pedido via email para: doudacorreria107@gmail.com
@douda.correria

Manuel Seatra, nascido a 27 de Dezembro de 1995, em Lisboa.
Em 2017 licenciou-se em Estudos Artísticos, Artes do Espetáculo na Faculdade de Letras da UL. Autor publicado pela Douda Correria: Dias de Folga (2018), Raiz Densa no Pátio da Garganta (2020).

https://doudacorreriablog.wordpress.com/tag/manel-seatra/

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