
Os Meaning to Crack são os viseenses Afonso Oliveira, Guilherme de Sousa, Martim Martins e Vitor Neto. Afonso é liricista,…
Diogo Rodrigues por João Pedro Lima; entrevista por @_filipada (IG)
Começa por falar sobre ti. Quem és, de onde vens, o que fazes… aproveita para dar o contexto que quiseres. A entrevista é tua.
“For the record”, sou o Diogo Rodrigues, tenho 20 anos e cresci em Lisboa.
A expressão na minha vida sempre esteve presente, porque sempre senti que era, de certa forma, oprimido. O que fazia com que acabasse a exprimir-me para mim próprio como uma forma de libertação.
A minha pessoa é muito marcada pelo meio onde eu me encontro no momento. Foi nos Olivais, no 3º ciclo, que o meu primeiro vínculo foi formado e onde tive o primeiro contacto com expressão “para fora de mim”. O ambiente à minha volta era o de um meio bairrista em que tudo é muito próximo. És puto, o irmão mais velho de um dos teus amigos mostra-te uma música do Sam the Kid, e tu começas a gostar. Comecei a ouvir hip hop e depressa saí das cenas mainstream para entrar na onda bairrista, com o pessoal mais velho do bairro. Comecei a escrever letras, se bem que eram más, era criança. Às vezes ia ter com pessoal mais velho na escola para mostrar o que tinha escrito, até que um dia me disseram para ir até ao parque mostrar o que tinha escrito a um gajo mais velho que já fazia rap. Foi assim que começou a minha cena de escrever para o hip hop.
Depois vim para Lisboa, fazer o secundário no Liceu Camões, onde formei o segundo vínculo enquanto pessoa e, obviamente, por consequência, artístico. Eu saí de um ambiente fechado, um nicho nos Olivais, para vir para uma escola no centro de Lisboa com uma data de “betinhos”. Era uma criança de periferia, não era citadino, mas acabei por me apaixonar pela cidade. O meu liceu era em Picoas, e havia horas de almoço em que eu saía sozinho, passear pela Avenida da Liberdade, só para ver o movimento da cidade — as dinâmicas sociais eram muito diferentes das dos Olivais. Foi aqui que comecei a sair do “mindstate” bairrista, na música, e comecei a ter em conta a expressão no sentido mais aprofundado. O meu gosto musical mudou um bocadinho, comecei a ouvir mais estilos de música além do hip hop (na altura só ouvia hip hop português). Comecei a escrever sem ser para o rap: prosa, prosa poética, coisas pequeninas que eu ia sentindo necessidade de pôr cá para fora.
Eu era o puto, que vindo de um ambiente bairrista, detestava tudo o que era escrita que não fosse rap, e ler — odiava. Tinha más notas a português e não queria saber daquilo. Às tantas decidi arranjar uma explicação com um professor que se revelou ser excelente, o Didier — que é poeta, escritor e fez a licenciatura e mestrado na NOVA — FCSH (onde eu mais tarde vim a ingressar). Acabei por descobrir que esse meu explicador tinha estado muito ligado ao rap nos anos 2000. Começamos a trabalhar a questão das aulas, subi de negativas para 15. Fizemos um acordo: se eu conseguisse manter as notas acima de 15, ele ajudava-me a explorar poesia, literatura e letras de rap, ele levava poemas para analisarmos e vice-versa. Eu levava letras de rap de outros artistas e minhas e ele acabava por me ajudar a escrever, porque eu mostrava-lhe também algumas cenas mais pessoais, de diário. Foi ele que me fomentou todo o gosto pela escrita e literatura, tanto que isso se refletiu nas notas e eu comecei a partir daí a escrever mais, com mais brio e com mais gosto.
É ainda no secundário que faço a minha primeira música de rap, já tinha uma data de coisas escritas e nunca as tinha gravado. Conheço um pessoal que quer trabalhar nisso, convidam-me, vamos fazer, gravam o som, o som saiu…não gosto nada dessa música. (risos) Eventualmente conheci, através de amigos em comum, o pessoal com quem faço som atualmente. Fui descobrindo cada vez mais o meu nicho, e aprofundando o estilo de música que faço agora, em termos do estilo em si, do público-alvo e temas que trato no rap. Ao mesmo tempo, a cultura hip hop é abrangente e envolvente e comecei a pintar grafitti com pessoal que eu conhecia do skate. Descobri que eles pintavam e fui experimentar. Ganhei o bichinho e acabei por conhecer o pessoal com quem ainda hoje pinto, e que não é o mesmo com quem eu rimo.
Depois, acabei o secundário, fui para a faculdade e conheci um grupo de pessoas maravilhoso que me fez dar uma reviravolta na forma de olhar para a vida. Em termos sociais, pessoais, artísticos não poderia ter sido melhor para fazer um terceiro vínculo da minha personalidade enquanto alguém que se expressa. Sentia total liberdade e à vontade para me expressar. Até então nunca tinha sentido um à vontade a 100%, sem entraves, num grupo de amigos no qual eu me conseguisse exprimir e falar sobre expressão. E ouvir, e ler, e ver trabalhos de outras pessoas que me eram tão próximas, queridas e amigas.
Sobre a tua relação com o hip hop: rap e graffiti. Enquanto ferramentas de expressão, qual o impacto e sentido, em ti, e quais as dinâmicas em que caminhas?
A primeira cultura que me acolheu foi o hip hop e eu era maluco pela sensação do hip hop, pelo movimento e história que acarreta. Era o estilo de vida que eu levava desde a nível da expressão, ao pensamento até ao visual e estética. Sempre fez sentido para mim sem que eu tivesse que questionar muito o porquê. Eu simplesmente gostava da ideia de poder transmitir de uma forma marginalizada, porque sempre tive algum apreço por aquilo que não é comum, que não é de massas.
Quando era puto adorava dançar e queria fazer breakdance. Acabei por começar a escrever, se calhar por ser a forma mais imediata de fazer hip hop. E até porque o hip hop é uma cultura quase autopoiética. A cena de tu pertenceres à cultura, viveres a cultura, acabas por perpetuá-la e as cenas acabam por sair de ti. Estás num grupo de amigos onde toda a gente ouve hip hop e identificas-te com quem tem coisas para dizer, acabando por ficar com essa vontade de ter voz, de te expressares. Por consequente, estando nesse meio, expressas-te nele, perpetua-lo.
Eu no hip hop rimo, faço-o com a persona OSSIO e também pinto graffiti. O rap apareceu antes do graffiti, na minha vida, e eu acredito genuinamente que aquilo que eu produzo em termos artísticos não é mais nada se não o fruto da expressão. Não acho que faça música para ser ouvido, embora eu saiba que há quem a vá ouvir. Em primeira e última instância, é uma forma de expressão que eu gosto e com a qual eu me sinto confortável.
A questão do graffiti acarreta mais uma ideia de partilha. Sempre gostei de pintar, pelas emoções e sensações que isso te traz, por ser ilegal. Estás a jogar um jogo em paralelo com o sistema e é um jogo que só quem joga é que sabe como funcionam as regras e aquilo que te faz sentir. O grafitti, no geral, é uma cultura de ego,no entanto, eu não jogo por esse motivo. Ou seja, há uma ideia no graffiti de fazer o nome subir, de elevar o nome por pintares mais, pintares melhor, pintares em mais sítios. Eu sempre gostei mais da ideia de pintar com pessoas, de partilhar experiências com pessoas e experiências tão fortes quanto tu estares a pintar, de forma ilegal com mais gente, que partilha o momento e as sensações contigo. Com a adrenalina, com a pressa, com o medo, com o orgulho, com o tu acabares e pensares “porra, nós fizemos isto e está aqui para toda a gente ver”. Mesmo sabendo que a maior parte das pessoas não olha, não liga e se liga é pela negativa. Então acho que o meu intuito, tanto no graffiti como no rap, é mais a experiência, o absorver daquilo que o processo me dá e não tanto como objetivo ou como uma conclusão.
Ainda no rap, és membro dos Drunkcore Crew. Como surgiu a crew? Sendo uma crew, como geres a criatividade com os restantes membros?
A minha crew, Drunkcore, surge quando eu estava no 12º ano e conheço o Chapz, no OutJazz, através de conhecidos e foi logo um “bonding” interessante. Entre copos, mostramos as cenas de rap um ao outro (o nosso amigo apresentou-nos já com esse intuito). Gostamos ambos da cena um do outro e começamos a trabalhar juntos. A fazer música em conjunto. Daí para a frente, nesse aspeto, o Chapz sempre puxou muito por mim. Já estávamos a dar concertos, do Chapz, em que eu ia ajudá-lo, e às tantas damos por nós e estamos a fazer músicas de: Chapz ft Ossio, Ossio ft Chapz, Chapz & Ossio; e deixa de haver uma ideia de “featuring” para passar a haver a ideia de um e outro, em conjunto. Às tantas o Chapz diz: “Vamos criar um grupo, em vez de lançarmos 50 músicas, um com o outro, lançamos as 50 músicas, num nome comum, partilhado.” Entretanto, eu tinha uma ideia de um projeto para uma música, que seria acompanhada de uma curta metragem, e foi esse projeto, por ser mais ambicioso e maior, que acabou por ser a alavanca para criarmos a crew e fazermos o projeto em conjunto. A crew está a fazer agora 3 anos e Drunkcore é uma abreviatura de Drunk style com Hardcore, porque era o meio com que nos identificavamos mais. A forma de exprimir era parecida, ouvíamos o mesmo tipo de música e foi natural que quando nos juntámos, tenhamos encontrado um meio termo entre o meu estilo e o dele, para ser uma sonoridade própria que nós acreditamos que não há mais em Portugal. É um estilo mais escuro, mais sinistro até, que não se vê tanto e muito menos no “mainstream” português. No “underground” vês algumas cenas que podem ser parecidas, mas não com uma sonoridade como a que nós temos. Mais tarde, juntou-se a nós o Jonny Lock.
A gestão criativa em Drunkcore tem alturas mais frutíferas, outras menos. Mas por norma, o elo que mobiliza o acontecer e o acontecimento é o Chapz, que é o que está nisto há mais tempo e que acaba por puxar mais por nós. Tanto que é ele que produz. Então o processo passa muito por ele fazer um instrumental e mostrar-nos, e acabamos por escrever para aquilo, seja todos juntos no mesmo sítio, seja separados, cada um no seu lado. Ou um escreve primeiro e os outros entram naquela onda, ou falamos de algum tema que queiramos abordar naquele tipo de sonoridade, que o instrumental proporciona.
Qual é o papel da sensibilidade do artista não só no teu projeto Drunkcore Crew, mas também na tua vida num panorama geral? Sendo uma pessoa sensível, como geres a tua sensibilidade no que fazes e no meio em que te encontras?
É sempre um desafio que me interessa bastante, admiro os artistas que conseguem fazer uma boa gestão de um lado mais pessoal e sensível. A verdade é que é difícil pôr isso cá para fora e apresentar coisas mais íntimas. No rap ainda o estou a aprender a fazer, até porque é um meio um à priori mais fechado, mais duro, menos fluído, onde é possível que as pessoas não se sintam tão à vontade para se expressar dessa forma. Estou a ver, também, cada vez mais pessoal novo a entrar no meio e a fazer isso: a trazer sonoridades diferentes que permitem uma sensibilidade diferente. Se bem que acredito que um artista não tem de ser isso. O papel da sensibilidade do artista, vale tanto quanto o valor que o artista lhe quiser dar. E acho que isso é comum a todos os ramos artísticos, não é só no hip hop.
Quanto a mim, eu acho que estou a aprender a fazer isso no rap. Noutras áreas artísticas é mais fácil, por outro lado não tenho tanta exposição, ou não me exponho tanto. Por isso é que eu acho que é capaz de ser mais fácil, porque a tensão que existe é sempre entre o interior e o exterior, o fazer e o não fazer. Colocar cá fora alguma coisa pessoal, quer nós queiramos quer não, quer nos importemos, quer não, vai gerar uma reação do lado oposto. Vai haver quem consuma, e quem consome vai formar uma opinião, e mesmo que essa opinião para o artista valha pouco, ela existe à mesma e é uma realidade no meio artístico. Há sempre um estímulo e uma reação.
No seguimento da gestão do lado sensível, acredito que a vulnerabilidade ande com ela de mãos dadas. O quão vulnerável te permites ser, estar na arte, no que crias e numa fase posterior no que partilhas?
No meio do hip hop não sinto tanta liberdade para ser vulnerável. Até porque há sempre uma ideia de uma persona que se cria e que, lá está, por ser a cultura do hip hop, acaba por se alicerçar um bocado à volta do ego. Daí que no hip hop não vemos tanta vulnerabilidade.
Acho que, na primeira fase da criação, me permito ser vulnerável à vontade. Ou seja, não encontro restrições. No entanto, acaba por ser, mais tarde, um processo seletivo quando passo para a partilha. Entre a criação e a partilha, vai ser um processo seletivo do que é que eu vou querer mostrar e o que não. Às vezes até acontece eu querer mostrar algo mas ir aprimorando a forma como o faço, para não expor tanto a minha vulnerabilidade. E isto é transversal a todas as áreas nas quais eu me expresso. Um dos meus grandes entraves, enquanto alguém que se expressa, é precisamente a ideia de partilhar e do processo de ser ou não ser vulnerável. Acho que acaba por me estagnar muitas vezes, porque não estou a conseguir sê-lo da forma que me estou a apresentar, ou não estou a conseguir pô-lo de uma forma que não me sinta demasiado vulnerável ou exposto, mais tarde.
Saindo do hip hop, para outra área marcante da tua personalidade artística: qual o papel da fotografia e do vídeo na tua expressão? E aqui, também, fala-nos dos teus processos criativos no mundo visual.
Desde novo que comecei a explorar e a ganhar curiosidade por imagem, por captá-la. Sempre brinquei com câmeras, e mais tarde comecei a fotografar com algum olho. Acho que a fotografia surge na minha vida como o tentar marcar uma forma de olhar para o mundo. As coisas já existem, nós vivemos em simultâneo com tudo à nossa volta, o que existe e vive, e a fotografia surge como uma ideia de tentar olhar para o mundo de alguma forma e mostrar alguma forma de posicionar o olhar perante o que me rodeia. Eu funciono por fases, mas acho que das coisas que mais gosto é fotografar as pessoas que me rodeiam. Há um cineasta bastante conhecido cujo valor para a História do Cinema é inestimável, chamado André Bazin, que descreve o aparecimento da máquina fotográfica como um dos maiores acontecimento na Arte: pela primeira vez temos um meio objetivo de olhar para o mundo e de captar a realidade, precisamente por se tratar de um mecanismo que é, literalmente, uma objetiva. Ele até diz que a fotografia veio emancipar a pintura, porque a pintura deixa de ter que estar presa à representação do real, já que a fotografia se encarrega disso. Depois, no meio dessa tese, ele acaba por defender a questão do realismo integral, que é a ideia da realidade vir ao encontro da máquina, e não ser a máquina a procurar a realidade. Eu gosto muito de pensar dessa forma, mas divido-me um bocadinho na ideia dele: eu acredito na noção de que a realidade pode vir ao encontro da câmera, no entanto, e isto já é mais que sabido historicamente, a fotografia não é um meio super objetivo de representar a realidade, porque ela já existe e há sempre pontos subjetivos — desde a lente que usas, até onde posicionas a câmera. E eu acredito que é nessa subjetividade, que pode ser muito pequena, ou que pode ser enorme, que está a forma de olhar para o mundo. Por isso é que digo que o mundo já existe, e que a fotografia para mim é um miradouro para a realidade, um ponto de vista que permite passar um foco.
Mais tarde na minha vida, surge o cinema. Primeiro enquanto apreciador, posteriormente a fazer trabalhos na área do vídeo, do cinema e a ser uma forma mais elaborada de mostrar um ponto de vista. Quando comecei a estudar cinema na faculdade, e a olhá-lo com outros olhos, descobri-o enquanto duas formas distintas, que são as que agora mais se revelam em mim. Um ponto de vista contemplativo e um ponto de vista ativo, de ação. É uma dicotomia interessante, a da questão contemplativa e da ação. Enquanto estamos a ver um filme, estamos a contemplar, mas também a receber estímulos e ideias que mais tarde poderão vir a ser ação, materializando-se. O cinema é um médium da realidade, uma forma de me ligar com a realidade, mais do que criar algo, um meio de fazer a ligação entre mim e o que me é exterior.
A questão do tempo sempre foi uma questão muito presente na minha vida, sempre lidei mal com ela e acabei a criar uma má relação com o tempo. No início, era apaixonado pelo movimento citadino, pela velocidade da cidade e agora considero-me desapaixonado dessa realidade que o dia-a-dia nos imprime, por estarmos numa sociedade capitalista. E como nunca lidei bem com o tempo, o cinema veio ajudar-me a lidar com ele. No ato de filmar tu estás a viver o tempo real, que está a acontecer. Isso faz com que pare e olhe para as coisas como elas são, com que pense sobre a realidade, e decida um ângulo de abordagem. Por outro lado, do ponto de vista contemplativo, eu acho que a máquina do cinema é incrível porque primeiro é uma máquina do tempo, no sentido literal, de o cinema criar tempos. Num filme tu podes em 30 segundos representar um ano, és tu que moldas o tempo. E quando estás a ver um filme, estás num momento de suspensão, nada mais está a acontecer e tu estás sentado, numa sala escura, com mais pessoas que estão a viver exatamente o mesmo tempo que tu, que é o tempo que o filme propõe. Isto é uma ideia incrível para quem sempre teve tantos problemas a lidar com o tempo, poder encontrar um sítio onde se gosta e é aprazível sentir o tempo. E foi a partir daí que comecei a cultivar o meu gosto sobre o dito “slow cinema”, cinema lento, um cinema que tem o peso do tempo todo. E é engraçado porque o “slow cinema” nada mais é do que um cinema em tempo real, sem muitos cortes, sem muita moldagem do tempo, se não a moldagem real que acontece. Porque o cinema lento é o cinema do tempo da ação, o que é algo que, hoje em dia, é difícil de se ter e de lidar, pois como vivemos numa velocidade que nos é impressa, temos distrações e estímulos constantes. Eu gosto do cinema que contraria isso.
Embora já tenhamos abordado brevemente este tópico, acho que seria interessante desenvolveres sobre a tua dinâmica com a expressão, seja no hip hop, seja na fotografia e no vídeo. Conta-nos sobre os teus processos criativos e de produtividade. Em que ocasião crias algo? Costumas estabelecer objetivos no teu processo de criação? Para te dar algum contexto, se quiseres podes falar sobre frustrações, entraves, desgostos, orgulho, satisfação, etc.
Primeiro, em termos gerais, os meus processos criativos são inconstantes e morosos. Há alturas em que sou muito produtivo, outras em que estou completamente encravado — e são muitas mais as alturas em que estou encravado do que as em que consigo criar — acabando isto por ser uma frustração enorme. Quando sentes necessidade de criar e não consegues porque estás completamente entupido e não sai nada. E só com tempo é que as coisas começam a sair uma a uma. Às tantas, há uma altura em que as cenas fluem de uma forma diferente e tu tens um rasgo de criatividade e acabas por escrever. Durante muito tempo eu prendi-me a processos criativos associados a estímulos negativos, até porque eu via (e vejo) beleza num processo que fosse difícil, que custasse e que fizesse sofrer. Então usava esses estímulos negativos para criar e para escrever, era o que mais me permitia expressar.
Por norma, não costumo colocar objetivos de criação. Embora eu ache que talvez devesse mudar isso. Até porque o rap é o único sítio onde eu coloco objetivos (não muito demarcados, no entanto) por ser um processo que engloba mais pessoas e mais pessoas dependentes de mim, numa crew. Mas o meu processo criativo, por ser inconstante, acaba por causar frustração e eu muitas das vezes vou buscar essa inspiração, ou fomentar essa frustração para conseguir criar, o que acaba por ser autodestrutivo. Mas lá está, é uma maneira de pôr coisas cá para fora que não é mais nem menos válida do que qualquer outra maneira. Por outro lado, é uma gestão que é, e tem de ser feita entre essa questão autodestrutiva e da criação, porque se for só autodestrutivo e não houver uma criação que valha a pena para isso, não é mais do que uma auto-sabotagem.
Em termos de produtos finais não senti até agora, ainda, mas também não acho que seja necessário sentir, um grande orgulho por aquilo que crio, até por que em termos de autoestima, sofro com a questão de não achar bom o que faço e isso faz com que seja mais difícil chegar a um produto final. Há produto, mas depois é constantemente trabalhado por eu achar que não é merecedor de ser final. Daí advém a pouca satisfação, embora eu ache que há uma diferença entre o orgulho e a satisfação, porque há sempre uma ideia de satisfação que é o processo e eu vejo muita beleza e sumo no processo, no fazer, mudar, sofrer, construir. Acho muito mais interessante o processo que o produto. Se olhares para uma performance, é um produto que é um processo, é algo que se transforma. Sinto que gostava de explorar e exprimir-me mais ao criar um produto que demonstre um processo. Todo o meu produto final é redutor porque o processo é tão frutífero que o final acaba por ser uma amostra pequena, não significativa, daquilo que foi o processo de criação desse produto. Assim, acaba por ser frustrante.
Queria agradecer-te o convite, acho mesmo bom teres criado esta plataforma que é a LIMBO, de expressão, prende-se precisamente com isso para mim: a expressão é muito maior do que uma obra, ou algo que seja arte finalizada. Dou muito mais valor ao processo do que propriamente aquilo que é um produto final. Obrigado e parabéns por te lembrares de fazer isto, olhar para a expressão. Isto faltava no meio artístico, por este se ligar inevitavelmente à ideia de mercado, de um produto que tem de ser consumido. Acredito que tenha mais interesse olhar para a expressão e para as diferentes formas que as pessoas têm para lidar com a criação e frustrações que daí advêm.
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