Muito bem, saindo um pouco desta questão da gestão criativa do projeto, queria perguntar-vos sobre a produtividade e gestão emocional da banda. Quão produtivos são? Se conseguem aproveitar o tempo mediante as vossas expectativas? Se encontrarem um obstáculo, como é que o ultrapassam?
Afonso — Não sei se falo por todos, mas eu funciono, em termos criativos, por inburst. Eu nunca sei quando é que vou ter um burst criativo, mas eles acontecem. Em termos de obstáculos, frustração, ficarmos empacados em alguma música… isso foi muito comum ao longo da escrita deste álbum. Mas acho que gerimos tudo bastante bem, porque conseguimos perceber quando é que as quatro cabeças não estavam a funcionar ao mesmo tempo, e respirávamos um bocado. Deixávamos a frustração para trás.
Martim — Soubemos gerir bem a parte emocional. Sabíamos o que fazer quando alguma coisa começava a correr mal. Não tínhamos um plano, mas sabíamos que tínhamos de parar e pensar: “Será que é isto que temos de fazer? Será que não é?”.
Afonso — E houve vários ensaios em que todos saímos frustrados por não saber resolver o problema que tínhamos. Mas se calhar no próximo ensaio, ou no seguinte, conseguíamos resolver o problema muito mais rapidamente. Talvez pelas epifanias de cada um.
Martim — E tivemos muitos ensaios com redundâncias dos anteriores, uma repetição. Porque estávamos a insistir na criação de uma só música. Depois havia epifanias na sequência do jamming. “Passamos já para isso, e deixamos isto para trás, apesar de já termos meia música feita, não é isto que queremos, siga para a frente!”
Vitor — É sempre um bocadinho difícil porque isto são problemas que não são fáceis de detetar. Há coisas que conseguimos dizer “ok, ficou resolvido”. Mas não é uma coisa visual, que consigamos detetar. Neste caso, trabalhando com arte, em música, nós não conseguimos chegar a um ponto em que dizemos “ok, a música acabou, está feita, é isto, ponto final, xau e adeus.” Não é uma coisa que consigamos definir, como na matemática, que chegas ao resultado final e pronto, acabou. É difícil dizer quando é que chegamos ao fim. E a partir daí também é difícil saber se estamos num impasse ou não. Porque nós não temos um fim, isto não é uma corrida de 100 metros. Às vezes a frustração até pode vir daí, porque estamos com a ideia de que o final seja de uma forma.
Gui — Até porque a interpretação de cada um de nós para a música que fazemos, enquanto estamos os quatro, pode diferir entre nós. Tentamos sempre ir ao encontro do que todos nós queremos, mesmo com as nossas diferentes interpretações. Mas acho que é o que o Vitor acabou de dizer.
Afonso — Eu acho que a decisão de não ter mais decisões criativas para uma música é uma decisão criativa, e é dizer que chegou ali, chegou ao fim.
Sem dúvida. Decidires não comentar algo, já estás a comunicar alguma coisa. Aproveitando o seguimento do que estão a abordar, vocês estabelecem objetivos? Sei que já abordaram por alto, mas seria interessante ouvir uma elaboração.
Vitor — A maior parte das ideias, dos objetivos, acabam por ser quantitativos. “Ok, fizemos x número de músicas.” E se não for isso, pelo menos no mínimo, que saiamos todos felizes com o que fizemos. Podemos não ter feito nada adicional ao que já tínhamos, mas se calhar melhoramos a nossa capacidade de nos compreender uns aos outros, e de interagirmos musicalmente. Eu posso compreender melhor como é que o Martim toca na bateria e consigo acompanhá-lo melhor. Se não houver nada produtivo a nível quantitativo, no mínimo sairmos mais felizes, melhores e com melhor entendimento do que conseguimos fazer.
Gui — Resumindo: javardamos, divertimo-nos e saímos de lá felizes.
*risos*
No fundo, estão a criar arte e no momento não se importam se vai ser publicada ou não.
Todos — Definitivamente.
Martim — É uma coisa mais pessoal, que outra coisa qualquer, a realização pessoal.
Vitor — Existem sempre objetivos, mas não é algo que queiramos atingir independentemente de tudo. Os objetivos são uma direção para a qual podemos ir, mas se mudarmos de caminho a meio, ou se de repente tivermos um objetivo diferente, ou não chegarmos aquilo que queríamos, não perdemos a vontade e ficamos felizes na mesma. Os objetivos podem ser sair de um ensaio com uma música melhor tocada, ou com menos erros, ou com uma evolução. Como é abstrato, não vamos embora chateados.
Afonso — Os nossos objetivos nasceram muito das oportunidades. Nós não tínhamos o objetivo de gravar o álbum quando o começamos a escrever. Nós escrevemos porque queríamos escrever alguma coisa. Mas a oportunidade surgiu e por isso tornou-se num objetivo da banda.
Gui — Fazemos música por prazer próprio e quando surgiu a oportunidade de gravar o álbum, quisemos levar o prazer que sentimos a tocar para as outras pessoas.
Vitor — Foi uma reação a uma oportunidade versus uma ação ativa à procura daquela oportunidade.
Indo buscar o que o Martim disse há pouco, sobre ser algo mais pessoal, em busca da realização pessoal: enquanto banda, e por serem uma banda (co-criadores), quão vulneráveis se permitem ser na vossa dinâmica, na criação da vossa arte? Já deu para perceber a vossa cumplicidade, e sei que têm o momento do trabalho de casa, mas é relevante perguntar isto porque quando estamos sozinhos somos muito mais livres, e por vezes não é fácil o “estarmos nus” perante alguém, figurativamente.
Gui — Nós somos uma banda porque fazemos música juntos, e temos coisas publicadas juntos. Mas este projeto de fazermos música juntos vem da nossa amizade. O que eu sinto, e acho que os quatro sentimos o mesmo, é que criamos uma amizade pela música, mas também fora. O tal à vontade, o tal “estar nu” perante os membros da banda, ocorre sempre mesmo quando não estamos a tocar e estamos só num bar juntos a beber umas cervejas, ou estamos na escola só a fazer qualquer coisa.
Afonso — Também é importante dizer que, sobre o que referiste de quando estamos sozinhos as coisas às vezes saírem de uma maneira mais pessoal e mais íntima, principalmente nos nossos trabalhos de casa… Muitas das vezes os nossos trabalhos de casa não eram individuais. Houve imensas noites em que fui ter com o Martim, e ficávamos horas e horas a falar, a fumar cigarros, a escrever… Portanto, eu acho que o ambiente da banda ser tão pessoal, e haver uma amizade tão forte entre todos os membros, onde todos se sentem à vontade para dizer seja o que for, cria um ambiente na música onde essa possibilidade também passa, e haja essa naturalidade de mostrarmos o que sentimos sem mostrar medo nenhum.
Vitor — Para mim, em vez de ser a nossa amizade em si, ou a nossa maneira de ser uns com os outros, a vulnerabilidade entre nós… não foi isso que levou à banda, acho que foi o inverso. O facto de começarmos como amigos e conhecidos a tocar juntos, que em si já é uma expressão única, porque estamos a tocar um instrumento e a exprimir-nos através do mesmo, é que fez com que nos tornássemos mais próximos uns dos outros. Foi a banda, a escrita da música, o estarmos ali fechados numa sala durante muitas horas e muitos dias. Foram essas ações que se calhar vieram de uma amizade simples, que levaram à interação que temos hoje em dia. Foi a banda que possibilitou sermos mais vulneráveis entre nós.
Afonso — Eu concordo com isso, sinceramente.
Gui — Eu concordo em parte, porque eu e o Afonso já tínhamos tocado várias vezes juntos, já tínhamos tido projetos à parte, quando andávamos numa escola de música de rock — que era uma javardice, claro. O Vitor juntou-se a nós depois, e ainda bem. E concordo que temos uma amizade forte por fazermos música juntos. Mas eu já conhecia muito bem o Afonso e o Martim, já tínhamos passado por muitas vivências juntos.
Martim — O que acontece é que também tem muito a ver com a história de como tudo começou. O Afonso e o Gui já se conheciam há muito tempo, conhecemo-nos na escola, fizemos a banda, éramos os três e mais duas pessoas. Era só para brincar. Depois a banda surge finalmente comigo, o Afonso e o Gui. E o Vitor juntou-se mais tarde. Eu acabei por ser o elo entre os restantes. Depois tudo começou a resultar e agora temos esta amizade gigante. Sobre a pergunta inicial, sobre a influência da vulnerabilidade na criação da nossa arte… acho que se aplica a nós. Nós discutimos os nossos sentimentos, livros, álbuns, que música queríamos realmente. Mesmo sem estarmos todos juntos, entre nós, conversávamos muito sobre o que queríamos da música, o que gostávamos de exprimir. Cada um no seu instrumento e com a sua individualidade, obviamente. E sempre fomos muito abertos, nunca houve nenhum entrave. Eu vejo o Gui a tocar um sentimento diferente do do Afonso, apesar de haver ali algo em comum. E o Vitor e eu a mesma coisa.
Às vezes nas bandas funciona muito com um vocalista que lidera, que escreve e compõe. Por isso, é muito interessante esse processo de co-criação, e saber que os instrumentistas têm uma força de expressão própria.
Vitor — Eu acho que connosco, e vocês corrijam-me ou adicionem, apesar da maior parte das letras, se não todas, serem escritas pelo Afonso, ele não era a única parte criativa da música. Ou seja, ainda que a letra fosse dele e, sim, a letra se calhar é a parte mais expressiva, todos nós com os instrumentos conseguimos modificar as letras de maneira a exprimirmos aquilo que sentíamos individualmente, e tendo em conta aquilo que o Afonso tinha escrito. As letras facilmente ganham o foco, e por isso poderia pensar-se que como é o Afonso que as escreve, que teria uma capitalização maior na criação da música. Mas acho que isso não acontece de todo, por isso mesmo.
Afonso — Lá está, eu como vocalista nunca quis ser o centro da banda. E mesmo como “front-man”, quando formos fazer os concertos que planeamos fazer, eu terei esse papel a fazer. Mas eu quero é que a banda seja o centro das atenções. Porque eu estou aqui para partilhar esta experiência, que eu tenho com os meus amigos, com o mundo exterior. A “New Year’s”, por exemplo, que é das mais antigas que temos no álbum, passou por imensas alterações a nível da letra. Embora tenha chegado aos ensaios com uma letra e ideia definidas, e para mim era aquilo e era, o Martim disse-me logo: “Epá, isto se calhar não está assim tão bem. Se calhar ficava melhor assim, x ou y.” E eu dei-lhe toda a razão, não tinha nenhum motivo para não querer mudar. E acho que a banda e a nossa música ganham muito disso: desta liberdade que damos uns aos outros de não só opinarmos, como também moldarmos cada parte à nossa expressão.
Vitor — Embora tu escrevas as letras não monopolizas o estilo da música, nem a emoção da música.
Gui — Aliás, quando fazemos qualquer música tentamos sempre moldar-lá os quatro juntos, sempre. Lá está, o processo de criação da música é o tal “jammar”, mas depois tentamos moldar tudo junto. Se o Martim não gostar de uma linha de baixo ou de guitarra, ou nós não gostarmos de uma linha de bateria do Martim, vamos estar sempre a confrontarmo-nos diretamente.
Vitor — Toda a gente tem de estar contente.
Martim — Um estilo democrático de resolver as coisas. Por acaso, acho que foi das coisas que mais causou fricção nos ensaios: 3 concordarem e 1 não concordar. E só dizíamos “ok, deixa-me desenvolver isto um pouco mais e se gostares fica, se não gostares não fica.”
Vitor — Nem é democrático, democrático seria se a maioria ganhasse. Mas nós não vamos por aí. Vamos trabalhar até todos estarem satisfeitos.
Não é uma democracia, tem de haver um consenso.
Vitor — Exato.
Gui — Ou seja, é comunismo! Tem que ser bom para todos e mais nada.
*risos*
Como o Vitor disse, é um compromisso. E esse compromisso passa por haver um altruísmo. Enquanto indivíduos artistas estão a criar algo e a fazer o papel de prescindir de parte desse algo?
Vitor — Nós podemos ter ideias do que seria no final, mas se os outros não tiverem a mesma ideia, temos de ter o pensamento de “Vamos ouvir, vamos ver as diferentes possibilidades, e chegar a uma conclusão.”
Exato. Embora já tenham tocado em vários pontos da última pergunta, coloco-vos: como é a relação da vossa arte com a expressão? A vossa música é fruto do que querem exprimir ao mundo enquanto indivíduos e/ou em quanto grupo?
Gui — Para mim, Arte é algo que nos faz sentir algo e que nós apreciamos. E eu faço isso com mais três pessoas. Para responder à pergunta, arranjei estes três burros para fazerem isso comigo. Para criar um tipo de arte, que mostra aquilo que eu sinto e para partilhar com as pessoas.
Afonso — Eu não iria tão longe, para mim Arte é só uma mensagem. E essa mensagem pode ser uma mensagem estúpida ou super pessoal. E acho que nós pegámos nessa ideia de Arte e decidimos transmitir aquilo que nos vem à cabeça, sempre com vontade de nos divertirmos e gostar do que fazemos.
Vitor — Para mim, no contexto do grupo, acho que nós não podemos, até mesmo se nos consideramos artistas individualmente, comprometer a nossa expressão, a nossa própria arte, pelo grupo. O grupo em si é apenas a união de nós todos, a fazer algo se calhar ligeiramente maior que cada um faria, e a ser um complemento daquilo que nós somos como artistas. Mas não posso dizer “ok, eu não vou deixar de fazer aquilo que gosto de fazer e exprimir, para fazer outra coisa diferente que se calhar eles gostam mais.” Eu acho que isso aí não pode ser. Tem de haver um compromisso de todos, de termos a expressão individual de cada um.
Obrigada a todos! Querem fechar a entrevista adicionando algo que tenha ficado por dizer?
Afonso — Pessoalmente, fico muito feliz por sentir que este álbum não está a ficar perdido. E espero que as pessoas tenham tanta felicidade em ouvi-lo, como nós tivemos desde o primeiro momento em que a ideia surgiu.
Martim — Dá para mandar beijinhos a alguém? Quero mandar para a taberna do BA, ao Leitão, ao Obviamente e à Taberna da Dona Madalena.
*risos coletivos*